22 de out. de 2009

Conto: Menino-Cinza


Gênero: Drama


Faltava vontade de viver naquele garoto.
Por anos a fio ele não tentara acender sequer uma fogueira de vida em seu peito, e sem saber como, nem quando, desistia voluntariamente de uma gota de emoção a cada dia, abrindo mão de cada passo, cada abraço dado, cada raio de sol.
Não sabia bem o que era seu, e não tinha consciência de atos alheios. Era ele alheio a si e aos outros, de tão paralisado que foi se tornando.
Era uma estátua respirante.
Coadjuvava, conformadamente, em sua própria vida. Ia deixando as folhas do calendário cair, se permitindo gastar a vida apenas da maneira mais econômica que conhecia: Parado.
Não se via satisfeito, obviamente... Mas não tinha vontade de mudar, também. Habituou-se ao escuro, à poeira e ao mofo de seu quarto cinza, com poucos livros, poucas roupas e pouquíssimas lembranças.
No canto esquerdo da parede de sua porta, guardava um baú antigo, desses de chave dourada, onde colocava os maços de cigarro vazios e os papéis com palavras que, às vezes, muito às vezes, tentava escrever, sem sucesso de idéias.
Sua mãe nem percebia sua existência; E não era por falta de amor. Era por tristeza de ter parido de si um peso morto, que aquela mulher renegava sua cria.
Seu pai abandonara o lar antes de completar quinze anos de casado. Era para ele uma humilhação ter como filho aquele garoto inútil - como já havia dito ao menino milhares de vezes em suas brigas monólogas.
O menino vivia uma vida sem objeções. Também pudera! Qual objeção teria alguém que nada faz?
Nem os estudos o interessavam. Formara-se no ensino médio com notas na média, tinha média atenção às aulas, era avaliado como "médio" em seu desempenho em classe. O médio era a tradução do tédio na vida do menino cinza.
Tinha média saúde, por não querer se exercitar nem se tratar quando sentia algo. Tinha média imaginação, pois não conhecia nem metade das experiências que poderia ter vivido, e que o inspirariam em alguma forma a expressar seu interno.
Além do médio, o nulo também era amigo presente. Presença nula, alegria nula, palavras nulas e sempre monossilábicas: "Sim", "Não", "Tudo bem".
Era de gênio nulo também.
Amigos não tinha; Quem gostaria de ter como amigo uma folha de papel em branco?
Aos 17 anos não havia vivido sequer um amor, dado sequer um beijo em alguma garota que o interessasse. Ele nem olhava as garotas. Nem ao seu computador, também, dedicava atenção. Pelo menos se fosse assim, seria algo de diferente a constar em sua ficha nula-média.
O menino cinza não olhava relógio, não comia besteiras, não ficava nervoso, nem ao menos sorria.
O menino cinza, por gostar de banalizar a si mesmo, colocara em si próprio este codinome.
Era uma maneira de se entender melhor. E nisso, ironicamente, ele achava graça.
Ria de sua própria covardia.
Certa feita o menino cinza viu-se obrigado a visitar a avó, mãe de sua mãe, que estava internada apresentando uma gastrite nervosa de tanto ceder de si em cuidados ao marido, já idoso, que sofria o mal de Alzheimer.
Era o tipo de obrigação familiar que o menino cinza detestava mas tinha que cumprir.
No hospital, entrara no quarto da avó e apertara sua mão dizendo: "Melhoras", e partiu ao saguão para aguardar sua mãe que repartia-se em lágrimas e palavras de afeto com sua matriarca.
No saguão, o menino cinza se preocupou em observar a maneira como a água se movia dentro do galão que ficava sobre o filtro elétrico.
Em vez de observar as pessoas, preferia abstrair-se em um objeto inanimado, que como o convinha, não poderia responder-lhe expressões.
Acontece que, de maneira automática, algo chamou a atenção do menino cinza. Uma das portas que cercavam o filtro d'água pelos dois lados abriu-se, e dela uma pequena senhora, já de cabelos brancos apesar de não aparentar idade avançada, saiu de mãos dadas com um pequeno garotinho, que não deveria ter mais do que seis ou sete anos.
Esse garotinho apoiava-se com uma das mãos em sua mãe, e com a outra segurava-se em um pedestal móvel que continha um cilindro de oxigênio, e também soro ligado diretamente em sua veia.
Curioso, o menino cinza observou aquela cena atentamente, e mau se deu conta de que mãe e filho, aos poucos, se aproximavam dele para sentarem-se nos dois bancos que restavam em sua fileira.
Absorto em seus pensamentos, o menino cinza analisou cada centímetro do garoto que parecia estar extremamente doente. Ele não possuía cabelos e nem sequer pelos em suas sobrancelhas. Abaixo de seus olhos haviam fortes marcas amarelo-escuras, que denotavam a ele um ar sofrido e cansado. Seu peito funcionava agitadamente, como se os tubos ligados ao seu nariz não estivessem lhe ajudando em nada a respirar. E com o espanto que só um tapa de luvas da vida pode causar a alguém, notara que a pele do garoto tinha, verdadeiramente, o tom que regia o codinome que dava a si mesmo: Cinza.
De lágrimas aos olhos e surpreso pela emoção compulsiva, o menino cinza encontrou, desesperado, os olhos da mãe do garotinho doente, que aproveitando que o mesmo havia dado alguns passos para brincar com uma das enfermeiras, disse em tom baixo, porém extremamente carregado de pesar:
- Câncer... Pulmão... Metástase. - E caiu em pranto solto, como se explicasse e depois agonizasse pela doença de seu filho.
O menino cinza, sentindo uma dor que não era a dele, não viu outra forma melhor de consolar a pobre senhora do que dando a ela seu abraço; O primeiro abraço verdadeiro que dera em alguém.
A senhora, comovida com o penar de sua própria história e de seu filho; Cansada de sofrer sozinha e sem alento, abraçou de retorno o menino cinza, que a essa altura traía toda sua maneira neutra de viver a vida, e chorava também um choro meloso e carregado de pena.
O menino cinza sentiu em si a dor daquela mulher que pariu, criou, e agora, desafiada pelo contrário da ordem natural das coisas, via seu rebento morrer antes dela, consumido aos poucos por uma doença cruel com a qual pecado algum cometido por uma criança justificasse tal punição.
Atormentado por seus próprios fantasmas, o menino cinza urrava internamente o desespero da alma que vivera presa por tantos anos querendo viver além da gaiola que o medo a impunha.
E como se não bastassem tantas emoções e sinas que a vida já havia lhe dado, o menino cinza ainda precisou de mais; Sentiu uma mão pequena e fria o tocar de leve a face dizendo como num suspiro de passarinho azul próximo a partir de seu ninho:
- Não chora moço. Brinca comigo que eu te ensino a sorrir!
Era o garotinho doente que mostrava pra ele que o corpo é uma casca, que idade não importa, que o amor pode brotar mesmo naquele chão de pedras rachadas e gélidas.
O garotinho, que tinha cada vez mais próximo de si a morte, preservava a calma e a inocência que só uma alma pura e sem culpas pode ter.
Vivera apenas sete anos ou um pouco mais, e se mostrava agradecido a Deus e satisfeito pela oportunidade que lhe fora dada.
O menino cinza perdeu suas grades com extrema facilidade, e sentou-se de pernas cruzadas, e ainda em pranto solto na face, no chão daquele hospital.
Disse ao garotinho, embalado em tom pesaroso:
- Vou te ensinar a brincar de adedanha, e você, se quiser, pode me ensinar a brincar de inventar alegria em tudo que se vê.
O garotinho, com um sorriso acanhado e fraco, abraçou o menino cinza e deu-lhe um beijo na face, dizendo:
- É só fingir que a vida é um caderno de desenhos, que o dia é uma página nova, e que todo o resto é giz-de-cera. Assim você pinta seus desenhos, um por dia, cada vez mais coloridos.
Foi esse o conselho que o garotinho lhe dera.
O conselho mais maduro que alguém poderia lhe dar.
Mal sabia a criança que com aquelas palavras, soltava de vez a alma do menino cinza, que imediatamente deixara de ser cinza para ser branco e colorir-se com gizes-de-cera.
O momento que fora rápido, porém eterno, acabou-se quando o menino que era cinza percebeu sua mãe de pé, a um passo da porta do quarto de sua avó, olhando-o comovida, encantada com a cena que via.
Ela via ali o contrário de tudo que seu filho sempre foi.
Embalados naquela emoção, demoraram muito para perceber: Era o momento de se despedir.
O menino que era cinza abraçou o garotinho doente, forte o bastante para que pudesse se mostrar agradecido pelo retorno da vida que o mesmo havia lhe dado de graça, mas com cautela e zelo suficientes para que não ferisse ainda mais aquele corpo frágil de um anjo que estava morrendo.
Abraçou também a mãe da criança, que lhe olhou nos olhos e disse:
- Meu filho não tem mais vida pra viver, são poucos os instantes que o restam. Mas não deixe que a sua escorra pelos seus dedos.
De mãos dadas com sua mãe, o menino que era cinza dirigiu-se à porta do hospital.
Estava surdo e mudo de tanta emoção.
Ele via o mundo com cores agora.
Há quem diga que nenhum de nós parte dessa vida sem mudar a vida de outrem.
Aquele menino doente, que perdia a batalha contra um câncer que o corroia, mudara a vida de muitas pessoas com sua resignação e pureza.
Foi essa a herança que aquela criança deixava para o mundo.
Ainda de olhos vermelhos, o menino que era cinza teve forças e olhou para trás uma última vez. Ele viu que passos agitados populavam o corredor onde estava há instantes.
Não queria imaginar, mas sabia que o passarinho, que antes estava fraco, havia finalmente batido asas rumo ao céu azul.
O menino doente havia abraçado a morte do corpo, e se libertado para a vida do espírito.
De lágrimas brotando em comoção, abaixou-se em prece pelo menino doente que agora estava saudável nos braços do Pai.
As palavras faltavam, mas os sentimentos eram fortes o bastante para expressar seus pensamentos naquele instante.
Entrou no carro de sua mãe, que ainda estava comovida, e disse antes de qualquer coisa:
- Acho que podemos pintar as paredes do meu quarto, mãe.
Ela, extasiada de felicidade e gratidão, perguntou-lhe em meio a um soluço:
- De que cor meu filho?
E o menino que era cinza viu passar pela janela um lindo passarinho azul, de canto leve, como quem reza pra agradecer o dom da vida, voando livre em rumo à imensidão de nuvens do céu, desfrutando da liberdade enfim conquistada e despedindo-se da dor que trouxe a sabedoria.

- Acho que a cor do céu é uma linda cor. - Respondeu o menino que era cinza.

E daquele momento em diante, de todas as cores que trazia em si, o menino gostava mais do azul...
E esquecera, para sempre, da existência do cinza.



Matheus

6 comentários:

Anônimo disse...

Lindo conto. Vc tem talento. Deus sabe o quanto desejo bem a você. Muita sorte!!

Shai Andrade disse...

Demasiado é o sentimento que expresso ao ler seus dramas.Parabéns tens a sensibilidade para a realidade;

Shirlene Andrade

Existenciofrênico disse...

Perfeito e sensível. Emocionou-me. E fez-me lembrar de algumas coisas minhas. Fez-me lembrar de um amigo. Enfim...

=]

Continue.

Paulo Vitor disse...

Muito lindo. Sensível.
Não posso negar que me identifiquei, em alguns momentos, com o menino cinza.

Abs

Anônimo disse...

Muito bom... Eu ví uma qualidade no menino cinza entre tantos "defeitos" a qualidade de se mostrar de se revelar... quantos e quantos meninos cinzas se guardam em suas "vidas gris"! As vezes somos coloridos de meras aparencias e cinzas pra nós mesmos! Ninguém é totalmente um cinza!

Anônimo disse...

Nossa,seu texto e simplesmente perfeito !