20 de out. de 2009

Conto: "A Menina no Banco da Praça"


Gênero: Drama

Lá estava ela.
Eu não sabia seu nome!
Pensei ser Clara, mas em volta dela era tudo triste e sombrio. Chamar-se Clara seria uma piada de mau gosto.
Decidi que seu nome era Maria.
Os olhos eram tristes e marejados de lágrimas, suas mãos sujas, seu rosto infantil e mesmo assim sofrido. Tinha ela a face de mulher guerreira, lua nova tímida e pequena, perdida em meio a tanto breu.
Face de mulher-maria.
As unhas encardidas e roídas eram contraste com o velho vestido sujo que usava que, mesmo em meio a tanta sujeira, apresentava um laço, um cordão e um bordado.
O laço um dia fora vermelho, apesar de agora ser uma cor sem nome, o cordão era desfiado e velho, e o bordado estava rasgado e sujo.
Era esse o tesouro da menina Maria; Seu vestido que tinha um laço um cordão e um bordado.
Nada mais era seu na vida.
A vida na verdade nem a ela pertencia.
Os donos de sua vida eram os mendigos bêbados, a mãe que a abandonara, e os policiais covardes de farda cinza.
Percebi que Maria gostava de cinza.
Na verdade ela mesma era quase cinza de se ver, de tão apagada.
Menos os seus olhos.
Eram verdes... E isso me fez rir.
Eu sonhei com os olhos de Maria quando era pequeno.
Por detrás daquela pele suja, daquele vestido velho, e daquele cabelo sem vida preso em um rabo mal feito, escondiam-se olhos verdes!
E tem mais; Eram tão verdes que me doeram a vista!
Eram esmeraldas, talvez.
E assim Maria tinha mais um tesouro; Seus olhos verdes.
Percebi que seu baú era o corpo pequeno, e as relíquias estavam guardadas fora: Um vestido, um laço, um cordão, um bordado e um par de esmeraldas que serviam para ver as coisas.
Ao seu lado Maria tinha também um pedaço de pão, e aos seus pés uma cadela dormia.
Meu Deus, que menina de tesouros mil era Maria!
O pedaço de pão certamente viera comendo há dias, com medo de que acabasse, pois vi nas esmeraldas de Maria que ela sentia fome.
A cadela tinha pelos crespos e focinho seco como a pele de Maria.
Pensei chamar-se Vida, mas seria novamente uma piada de mau gosto.
Concluí que se chamava Preta, pois era assim a vida das duas.
Aos poucos, enquanto Preta dormia, e Maria comia delicadamente seu pedaço de pão, a praça num suspiro estava vazia.
Éramos eu e Maria.
Pensei em partir, deixar pra trás Maria e sua triste história.
Pensei em não ponderar sobre os perigos que Maria passava, sobre as noites escuras e frias que enfrentava, e sobre a infelicidade que era perder na rua sua infância, sendo mulher tão jovem e sendo guerreira mesmo tão fraca.
Mas dentro de mim ainda restara um pouco de compaixão, talvez eu não seja apenas mais um urbano qualquer.
E assim, com pensamentos que me levavam como ventos levam os barcos, me aproximei de Maria.
Atravessar a praça parecia uma longa caminhada, mesmo Maria estando a menos de dez passos de mim.
Cheguei perto e pedi para me sentar. Mas Maria não respondeu.
Acho que Maria tinha medo de falar.
Falar hoje atrai muitos equívocos, já que são poucos que escutam com a alma.
Resolvi ir com calma, Maria tinha motivos de sobra pra ter medo de qualquer um.
Acariciei a cadela Preta e tentei olhar de perto as esmeraldas de Maria, mas ela estava de cabeça baixa e tremia de frio e medo.
Perguntei se tinha fome, e se tinha sede, e se tinha vontade de tomar um banho.
E Maria, mesmo tão arredia e temerosa, disse que sim.
Mas aquilo não me bastou, e numa explosão de sentimentos perguntei à Maria se ela tinha vontade de ter uma família. Disse que se quisesse poderia morar em minha casa, onde teria a mim como pai, minha mulher como mãe, uma lareira para as noites frias e livros coloridos para os momentos de lazer.
Em mente perguntei-me se Maria saberia ler, mas resolvi que se não soubesse eu mesmo poderia ensiná-la.
E pela primeira vez Maria me olhou.
Mas eu não pude olhá-la.
Por favor, me entendam.
O reflexo das esmeraldas de Maria, molhadas de lágrimas e felicidade, era demais para os meus olhos de gente grande.
E Maria me respondeu: Sim.
E foi tão simples como nascer.
Toquei a mão de Maria, e vi que sua pele não era seca como a imaginara.
Senti o cheiro de Maria, e ele era suave, como o cheiro de uma pessoa querida.
E percebi também, que, de perto, seu vestido era bonito, e seu laço era mesmo vermelho, que seu cordão não era assim tão desfiado, e que seu bordado não estava assim tão rasgado.
E isso me aliviou.
Dentro de Maria ainda vivia um pouco de criança.
Levantamos e juntos começamos a caminhar.
Maria deixara para trás seu pedaço de pão.
Deixara para trás uma vida de dor, e agora, com ela tão perto de mim, a única coisa que ela merecia era muito de tudo, muito do meu amor.
Começou ali a nova vida de Maria, e como por encanto, como se fosse possível, suas esmeraldas brilharam num verde inacreditável...
Era a alma de Maria que estava feliz!
De mãos dadas e o pôr-do-sol, éramos mais uma vez apenas eu e Maria na praça.
Mas agora as cores do mundo eram mais fortes pra nós.
Era emoção de mais para conter em um instante apenas.
- Como se chama? – Perguntei
- Clara – ela me respondeu.
E na mesma hora meus olhos se encheram de lágrimas.
Mas segurei o pranto, não seria justo chorar agora.
- E como se chama sua cadela?
- Vida.
...
Chorei.


Matheus

(Publicado no "Jornal Observador" em 12/06/2009)

2 comentários:

Renato Junqueira disse...

Fala Matheus, valeu pelo comentário lá no Terra Estranha! Dei uma passada aqui pra conhecer também, muito bom esse conto, deu pra imaginar Clara perfeitamente! Também já escrevi sobre o assunto tempos atrás, o título é Sombras Urbanas, eu acho! E por falar em blogs da vida, dê uma olhada no blog da Ana também! Na verdade o blog dela é em conjunto com a Julya, uma amiga, o link é: www.fragmentosdecartas.blogspot.com

Até mais!

Ana Carolina disse...

eimPuxa vida, eu acho que esta é a coisa mais linda que já li desde que consigo me lembrar, sério. Os sentimentos são quase palpáveis, muito boas descrições, a cena se desenvolve como num teatro. Gostei muito mesmo. Dos mais antigos também.
Obrigada por visitar o Fragmentos, pode voltar quando quiser, porque eu com certeza voltarei aqui.


Parabéns! Ana. =)